sexta-feira, 30 de novembro de 2012

9


Acordo com meu telefone tocando e por um segundo sinto-me desorientada em meu próprio apartamento.
Então ouço a voz estridente de Sophia na minha secretaria eletrônica, insistindo que eu atenda, atenda, por favor, atenda. De repente, meu crime entra em foco. Sento rápido demais e meu apartamento gira. As costas de Arthur estão voltadas para mim, bem delineadas e com sardas esparsas. Dou uma cutucada nele com força.

Ele se vira e olha para mim.
— Ai, meu Deus! Que horas são?
Meu radio-relógio nos informa que são 7h15. Faz duas horas que tenho trinta anos. Correção — uma hora, nasci no fuso horário da região central do país.
Arthur sai rápido da cama catando suas roupas, que estão espalhadas pelo quarto. A secretária eletrônica emite dois bipes, interrompendo Sophia. Ela telefona de novo e fica o tempo todo falando sobre Arthur não ter voltado para casa. Mais uma vez, minha máquina a interrompe no meio de uma frase. Ela telefona uma terceira vez, gemendo:
— Acorda, vai, me telefona! Preciso de você!

Quando começo a me levantar, percebo que estou nua. Sento de novo e me cubro com um travesseiro.
— Oh, meu Deus. O que a gente faz? — minha voz está rouca e trêmula. — Será que eu devo atender? Dizer a ela que você dormiu aqui?..
—  não! Não atenda.. deixa eu pensar por uns segundos
Ele se senta, só de cueca, e esfrega o maxilar, agora coberto pelo sombreado de inicio de barba.
Um pavor doentio e capaz de me deixar sóbria se apodera de mim. Começo a chorar. O que nunca ajuda em nada.
— Olha só, Lua, não chora— diz Arthur. — Tudo vai acabar bem.
Ele veste o jeans e depois a camisa, puxa o zíper, enfia a camisa para dentro da calça e abotoa com eficiência, como se fosse uma manhã como outra qualquer. Em seguida verifica as mensagens no celular.
— Merda, 12 chamadas não atendidas — diz ele, sem parecer muito preocupado. Apenas seus olhos revelam uma certa ansiedade.
Depois de se vestir, Arthur senta de novo na beira da cama e apóia a testa sobre as mãos. Percebo que ele está respirando forte pelo nariz. O ar para dentro e para fora. Então ele olha para mim, recomposto.
—Certo. É isso que vai acontecer. Lua, olha para mim.
Obedeço às suas instruções, ainda agarrada ao travesseiro.
— Tudo vai ficar bem. Escuta só — explica Arthur, como se estivesse conversando com um cliente numa sala de reuniões.
— Estou ouvindo. —digo.
— Vou dizer a ela que fiquei na rua até mais ou menos cinco horas e depois fui tomar café com Micael. Pronto, ela não vai desconfiar de nada.
— O que eu falo para ela? — quero saber. Mentir nunca foi o meu forte.
— Diga apenas que você saiu da festa e veio para casa... Diga que você não consegue se lembrar com certeza se eu ainda estava lá quando você saiu, mas que você acha que eu ainda estava lá com o Micael. E não deixe de dizer que você "acha"... não seja tão taxativa. E isso é tudo o que você sabe, certo? - ele aponta para o meu telefone. - Liga de volta para ela, agora ... vou ligar para o Micael assim que sair daqui. Entendeu?
Balanço afirmativamente a cabeça, meus olhos se enchendo de lágrimas novamente, enquanto ele se levanta.
- E fique calma - diz ele, sem maldade, mas com firmeza. E logo ele já está na porta, uma das mãos na maçaneta, a outra percorrendo o cabelo escuro, longo o suficiente para ser sexy.
- E se ela já tiver falado com o Micael? - pergunto quando Arthur já está no meio do corredor. Depois digo para mim mesma: - Estamos muito ferrados.
Ele se vira e olha pra mim do corredor. Por um segundo acho que está bravo, que vai gritar comigo para que eu me controle. Que isso não é uma questão de vida ou morte. Mas o tom dele é delicado.
- Rach, nós não estamos ferrados. Já resolvi tudo. Você apenas fala o que eu disse para você falar... E ... Lua?
- O quê?
- Sinto muito.
- É - respondo - Eu também.
Será que estamos falando um com outro ... ou com Sophia?
Logo que Arthur vai embora, vou para o telefone, ainda me sentido tonta. Demoro alguns minutos, mas finalmente crio coragem para ligar para Sophia.
Ela está histérica.
- O filho-da-mãe não veio para casa ontem à noite! É melhor que ele esteja deitado na cama de um hospital!... Você acha que ele me traiu?
Começo a dizer que não, que provavelmente ele apenas saiu com Micael, mas penso melhor. Isso não pareceria óbvio demais? Será que eu diria isso se não soubesse de nada? Não consigo pensar. Minha cabeça está estourando e meu coração batendo forte. De tempos em tempos o quarto volta a girar.
- Tenho certeza de que ele não estava traindo você.
Ela assoa o nariz.
- Por que você tem tanta certeza?
- Porque ele não faria isso com você, Darce.
Não consigo acreditar nas minhas palavras, na facilidade com que elas saem.
- Bem, então onde é que ele está, porra? Os bares fecham lá pelas quatro, cinco horas. Porra são 7h30.
- Eu não sei ... mas tenho certeza de que existe uma explicação lógica.
O que de fato existe.
Ela me pergunta a que horas eu fui embora, se ele ainda estava lá e com quem estava - exatamente as perguntas para as quais Arthur me havia preparado. Respondo com cuidado, como fora instruída. Sugiro que ela telefone a Micael.
- Já telefonei - diz ela. E aquele imbecil não atendeu o maldito celular.
Sim. Nós temos uma chance.
Ouço um clique de uma ligação na espera e Sophia desaparece, depois volta, dizendo que é o Arthur e que ela vai me telefonar assim que puder.
 Levanto e ando cambaleante até o banheiro. Olho no espelho. Minha pela está toda manchada, avermelhada. Meus olhos estão com rodelas de rímel e lápis de maquiagem e ardem porque dormi com as lentes de contato. Tiro as lentes rapidamente, segundos antes de ter ânsias de vômito sobre a privada. Não vomito por causa da bebida desde os tempos de faculdade, e mesmo assim isso só aconteceu uma vez. Porque aprendo com os meus erros. A maior parte das pessoas na faculdade diz: "Nunca mais vou fazer isso". Então fazem de novo no fim de semana seguinte. Mas eu mantenho a palavra. É assim que sou. Vou aprender com essa também. Deixa só eu me safar dessa.

8


Faço que sim com a cabeça e sorrio.
De soslaio, vejo Anjo Caído girar em seu banco de bar e dar uma olhada em Arthur, absorvendo seus traços bem desenhados, o cabelo ondulado e os lábios carnudos. Uma vez Sophia reclamou que Arthur provocava mais olhares e viradas de cabeça do que ela. Entretanto, ao contrário de sua parceira do sexo oposto, Arthur parece não perceber a atenção. Anjo Caído agora olha em minha direção, provavelmente imaginando o que Arthur está fazendo comigo.
Espero que ela pense que somos um casal. Hoje à noite ninguém precisa saber que sou apenas coadjuvante na festa de casamento.
Arthur e eu conversamos sobre nossos trabalhos, sobre a casa que vamos dividir em Hamptons a partir da próxima semana e sobre muitas outras coisas. Mas o nome de Sophia não é mencionado, nem o casamento deles em setembro.
Depois que terminamos nossa cerveja vamos até a jukebox, enchemos a máquina com dólares, em busca de músicas boas. Aperto duas vezes o código para “Thunder Road” porque essa é minha música favorita. Digo isso a ele.
— É, Bruce Springsteen também está no topo da minha lista. Você já viu algum show dele?
— Já — respondo. — Duas vezes.

Quase digo a ele que fui com a Sophia nos tempos da escola, que a arrastei comigo embora ela preferisse bandas como Poison e Bon Jovi. Mas não menciono isso. Porque do contrário ele vai se lembrar de voltar para casa para encontrá-la e eu não quero ficar sozinha nos últimos momentos dos meus vinte anos. Obviamente, preferia estar com um namorado, mas Arthur é melhor do que nada.
No 7B os garçons estão atendendo aos últimos pedidos da noite. Pegamos mais algumas cervejas e voltamos para a mesa. Algum tempo depois entramos novamente num táxi, indo em direção ao norte pela Primeira Avenida.
— Duas paradas — avisa Arthur ao motorista, porque moramos em lados opostos do Central Park.
Arthur está segurando a bolsa Chanel de Sophia, que fica pequena e deslocada em sua mão enorme. Olho para o mostrador prateado do Rolex dele, um presente de Sophia. Falta pouco para as quatro horas.
Ficamos em silêncio por uns dez ou 15 quarteirões, ambos olhando para fora de nossas respectivas janelas, até que o carro passa por um buraco e me vejo lançada para o meio do banco traseiro, minha perna roçando a dele. Então, de repente, do nada, Arthur está me beijando. Ou talvez eu esteja beijando Arthur. Não sei como, estamos nos beijando. Minha cabeça fica leve enquanto ouço o suave som dos nossos lábios se encontrando repetidas vezes. A certa altura, Arthur, entre um beijo e outro, diz ao motorista que no fim das contas vai ser apenas uma parada.
Chegamos na esquina da 73 com a Terceira Avenida, perto do meu apartamento. Arthur entrega uma nota de vinte para o motorista e não espera pelo troco. Saltamos do táxi, nos beijamos mais na calçada e então na frente de José, meu porteiro. Enquanto subimos, nos beijamos o tempo todo. Estou imprensada contra a parede do elevador, minhas mãos em sua nuca. Fico surpresa ao sentir a maciez do cabelo dele.

Luto com as chaves, girando para o lado errado da fechadura, enquanto Arthur mantém o braço em torno da minha cintura, seus lábios no meu pescoço e na lateral do meu rosto. Finalmente a porta se abre, e estamos nos beijando no meio do meu apartamento.. Vamos cambaleando até minha cama, e ele pergunta:
— Você está bêbada? — A voz dele é um sussurro no escuro.
—Não — respondo.

Porque sempre se diz que não se está bêbado. E embora eu esteja tenho um momento de lucidez quando considero exatamente o que estava faltando nos meus vinte anos e o que desejo encontrar a partir dos meus trinta. Fico impressionada ao ver que, de certa forma, posso ter ambas as coisas nesta importante noite de aniversario. Arthur pode ser meu segredo, minha ultima chance para um capitulo oculto nos meus vinte anos, e também uma espécie de prelúdio — uma promessa de que alguém como ele possa aparecer. Sophia surge no meu pensamento, mas esta sendo empurrada lá para trás, encoberta por uma força mais forte do que nossa amizade e do que a minha própria consciência. Arthur se movimenta sobre mim. Meus olhos estão fechados, então abertos, depois fechados novamente.
E então, não sei como, estou na cama com o noivo da minha melhor amiga.

7


— Roubando a cena na sua festa — cochicha comigo Mel, minha melhor amiga do trabalho. — Ela não tem vergonha.
Eu rio.
— É, isso é a cara dela.
Sophia solta uns gritinhos, bate palmas com os braços para o alto e me convoca com uma expressão sedutora que agradaria qualquer homem que já tenha alguma vez fantasiado com mulheres interagindo com mulheres.
— Lua, Lua, vem pra cá!

É claro que ela sabe que eu não vou me juntar a ela. Jamais dancei em cima de um bar. Não saberia o que fazer lá em cima, a não ser cair. Balanço a cabeça e rio, uma recusa educada. Ficamos todos aguardando a próxima jogada, que consiste em girar os quadris exatamente no ritmo da música, ir se inclinando aos poucos e depois voltar bruscamente para endireitar o corpo, o cabelo se esparramando para todos os lados. A flexibilidade da manobra me faz lembrar de sua imitação perfeita de Tawny Kitaen no clipe de “Here I Go Again”, do Whitesnake, da maneira como ela rodopiava e fazia spaccati no capô do BMW do pai dela, para deleite dos adolescentes da vizinhança. Olho para Arthur, que nesses momentos nunca sabe se acha divertido ou se fica irritado. Dizer que o cara é paciente é pouco. Arthur e eu temos isso em comum.

— Feliz aniversário, Lua! — grita Sophia. — Vamos todos fazer um brinde à Lua!
E é o que todos fazem. Sem desgrudar os olhos dela.
Um minuto depois, Arthur tira Sophia do bar, suspendendo-a em seus ombros e devolvendo-a ao chão, ao meu lado, num movimento contínuo. Com certeza ele já fez isso outras vezes.
— Está bem — anuncia ele. — Vou levar nossa pequena organizadora de festas para casa.
Sophia apanha sua bebida e bate o pé.
— Você não manda em mim, Arthur! Não é, Lua?
Enquanto afirma sua independência, Sophia tropeça e derrama todo o martíni no sapato de Arthur. Ele faz uma cara feia.
— Você está bêbada, Darce. Ninguém está achando a menor graça, só você.
— Tudo bem, tudo bem. Eu vou embora... Estou mesmo me sentindo meio mal — diz ela, parecendo enjoada.
— Você vai ficar bem?
— Vou ficar numa boa, não se preocupe — responde, agora fazendo o papel da menininha doente e corajosa..
      
Agradeço Sophia pela festa, digo que foi uma completa surpresa — o que é uma mentira, porque sabia que ela tiraria vantagens do meu trigésimo aniversário para comprar um vestido novo, dar um festão e convidar tantos amigos dela quanto meus. Ainda assim, foi legal da parte dela ter organizado a festa e estou satisfeita de que tenha feito isso. Sophia é o tipo de amiga que sempre faz as coisas parecerem especiais. Ela me dá um abraço apertado, diz que seria capaz de fazer qualquer coisa por mim e pergunta o que seria dela sem mim, sua madrinha número um, a irmã que ela nunca teve. Ela está bastante efusiva, como sempre fica quando bebe demais.
Arthur a interrompe.

— Feliz aniversário, Lua. A gente se fala amanhã.
Ele me dá um beijo no rosto.
— Obrigada, Arthur — digo. — Boa noite.
Fico observando enquanto ele a conduz para fora, segurando-a pelo cotovelo depois que ela quase tropeça no meio-fio. Oh, ter um guarda costas como este. Poder beber sem a menor preocupação, sabendo que haverá alguém para levar você em segurança para casa. Algum tempo depois, Arthur reaparece no bar.

— Sophia perdeu a bolsa. Ela acha que deixou por aqui. É pequena, prateada — diz. — Vocês viram por aí?
— Ela perdeu a bolsa Chanel dela?

Balanço a cabeça e rio, porque perder as coisas é a cara da Sophia. Em geral tomo conta das coisas dela, mas no meu aniversário não estou a serviço. Ainda assim, ajudo Arthur a procurar a bolsa, encontrando-a, afinal, embaixo de um dos bancos do bar.
Quando ele já está de saída, Micael, um amigo de Arthur, um de seus padrinhos de casamento, o convence a ficar.

— Ah, vai, cara. Fica mais um pouco aí.
Então Arthur liga para Sophia em casa e ela balbucia seu consentimento, diz a ele para se divertir sem ela. Embora provavelmente esteja convencida de que tal coisa não seja possível.

Aos poucos meus amigos vão indo embora, ainda me desejando parabéns. Arthur e eu somos os últimos, até mesmo Micael já foi. Sentamos no bar puxando conversa com o ator/barman que tem um “Amy” tatuado e interesse zero numa advogada que está envelhecendo. Já passa das duas quando decidimos que está na hora de ir embora. A noite está mais para meados de verão do que para primavera e, de repente, o ar quente me enche de esperanças: Este vai ser o verão em que vou encontrar o homem da minha vida.
Arthur chama um táxi para mim, mas, quando o carro pára, ele diz:

— Que tal irmos para um outro bar? Quer tomar mais um drinque?
— Tudo bem — respondo. — Por que não?

Entramos no carro e ele diz ao motorista para ir dirigindo, que ele ainda tem de pensar em qual vai ser a próxima parada. Acabamos em Alphabet City, num bar que fica na esquina da Sétima Avenida com a Avenida B, apropriadamente chamado 7B.
Não é um cenário muito pra cima — o 7B é meio sombrio e enfumaçado. De qualquer forma, gosto dali — não é pretensioso e tampouco uma espelunca se esforçando para ser bacana justamente por não ser pretensiosa.
Arthur aponta na direção de uma mesa que fica entre dois bancos altos.

— Senta aí. Eu já venho.
Ele se vira.
— O que eu trago pra você?
Digo que vou querer o mesmo que ele, sento e fico esperando na mesa. Percebo que ele diz alguma coisa para uma garota que está no bar, vestida com uma calça verde-oliva cheia de bolsos grandes e uma camiseta bem justa onde se lê “Anjo Caído”. Ela sorri e balança a cabeça. “Omaha” está tocando ao fundo. É uma daquelas músicas que parecem melancólicas e alegres ao mesmo tempo.
Alguns momentos depois, Arthur desliza pelo banco à minha frente e empurra uma cerveja na minha direção.
— Newcastle — diz ele. Então sorri— Você gosta?

6

De repente me ocorre que eu poderia me ajeitar com o barman. Estou totalmente desimpedida — nem ao menos saí com alguém nos últimos dois meses. Mas não me parece uma coisa que alguém devesse fazer aos trinta. Viver uma aventura de uma noite é para meninas que estão na casa dos vinte. Não que naquela época eu soubesse disso. Meu caminho sempre foi o do bom comportamento, o de uma pessoa certinha, sem desvios. Tirava dez em tudo na escola, entrei para o segundo grau, me formei com grandes honras, fiz a prova para entrar no curso de Direito, fui direto para a faculdade e depois para um grande escritório de advocacia. Nada de sair pela Europa de mochila, nada de histórias malucas, nada de paixões doentias ou tórridas. Nada de segredos. Nada de intrigas. E agora parece que é tarde demais para qualquer coisa do tipo. Porque esse negócio apenas retardaria ainda mais os meus planos de encontrar um marido, de me estabelecer, ter filhos e um lar feliz...
   
Sendo assim, fico apreensiva a respeito do futuro e, de certa forma, arrependida em relação ao passado. Digo a mim mesma que haverá tempo de ponderar a questão amanhã. Neste exato momento vou me divertir. É o tipo de coisa que uma pessoa disciplinada pode simplesmente decidir. E sou extremamente disciplinada — o tipo de criança que fazia o dever de casa na sexta-feira à tarde, logo depois da escola, o tipo de mulher (já que a partir de amanhã não restará mais nada de menina em mim) que passa fio dental todas as noites e que faz a cama todas as manhãs.
Sophia volta com as bebidas, mas Arthur recusa a dele, então ela insiste que eu fique com duas. Antes que eu perceba, a noite começa a adquirir aquela nebulosidade, entra naquele estágio em que você passa da condição de alegre para a de bêbada, perdendo a noção do tempo e da ordem exata das coisas. Pelo jeito, Sophia atingiu esse estado até antes de mim, porque neste exato momento ela está dançando sobre o bar, rodopiando e serpenteando num minúsculo vestido...

5

Sophia continua sendo a segunda  sortuda da turma. Estou a observando agora, enquanto ela conta uma história para um grupo de amigos nossos, ....incluindo o noivo dela. Arthur e Sophia formam um belo casal, magros e altos, ambos com cabelos escuros e olhos verdes. Eles fazem parte da alta sociedade de Nova York..
- Moral da história: se você quer uma depilação à brasileira, seja bem específica. Diga à depiladora para deixar uma margem de segurança ou vai acabar sem nada, como uma menininha de dez anos de idade! - Sophia conclui sua historinha indecente e todo mundo ri. Com exceção de Arthur, que balança a cabeça como se dissesse "que figura esta minha noiva".- Certo. Volto já, já - declara ela, de repente. - Uma rodada de tequila para todos!
Enquanto ela se afasta do grupo em direção ao bar, começo a me lembrar de todos os aniversários que celebramos juntas, todos os marcos que atingimos juntas, marcos que eu sempre atingi primeiro. Tirei minha carteira de motorista antes dela e pude legalmente beber antes dela. Ser mais velha, mesmo que por apenas alguns meses, costumava ser uma coisa boa. Mas agora nossa sorte mudou. Sophia tem um verão a mais na faixa dos vinte — uma vantagem de ter nascido no outono. Não que isso faça muita diferença para ela: quando você está noiva ou é casada, fazer trinta anos simplesmente não é a mesma coisa.
Neste momento Sophia está debruçada no bar, dando bola para um cara de vinte e poucos anos, aspirante a ator/barman a respeito do qual ela já declarou que, se fosse solteira, “traçaria” facilmente. Como se algum dia Sophia fosse ser solteira. Uma vez, quando estávamos no segundo grau, ela disse:
— Eu não termino, eu troco.
Neste caso ela manteve a palavra; era sempre ela quem dispensava. Durante toda a nossa adolescência, faculdade e juventude, Sophia esteve ligada a alguém. Em geral ela tem mais de um cara esperançoso por perto..

4


Como as noites de Ano-Novo, esta noite representa um final e um começo. Não gosto de finais e começos. Se pudesse escolher, ficaria oscilando entre os dois extremos. A pior coisa desse final (da minha juventude) e desse começo (da meia-idade) é que, pela primeira vez na vida, percebo que não sei para onde estou indo. Meus desejos são simples: um trabalho de que eu goste e um cara que eu ame. E na noite do meu trigésimo aniversário tenho de reconhecer que estou perdendo por 2 a 0.
Em primeiro lugar, sou advogada de um grande escritório de Nova York. Trabalho durante horas torturantes, cuidando das tarefas mais tediosas para um dos advogados associados do escritório, que é mesquinho e obsessivo. E esse tipo de ódio pelo próprio trabalho é uma coisa que começa a crescer aos poucos em você. ...
 estou sozinha numa cidade de milhões. Tenho vários amigos, como ficou comprovado pela presença maciça esta noite. Amigos para andar de patins. Amigos para veranear nos Hamptons. Amigos para encontrar na quinta à noite depois do trabalho, para um, dois, ou três drinques. E tenho Sophia, minha melhor amiga, que nasceu no mesmo lugar que eu e sintetiza tudo isso que acabei de dizer. Só que todo mundo sabe que amigos não são tudo, embora muitas vezes eu diga o contrário, apenas para não ficar mal diante das minhas amigas casadas e noivas. Eu não tinha planos de estar sozinha quando chegasse aos trinta, mesmo ao início dos trinta. A esta altura eu já queria ter um marido; queria ter ficado noiva na faixa dos vinte. Mas aprendi que a gente não pode simplesmente fazer um cronograma pessoal e desejar que se torne realidade. Então aqui estou eu, às portas de uma nova década, chegando à conclusão de que estar sozinha faz dos meus trinta anos uma coisa assustadora, e de que ter completado trinta faz com que eu me sinta mais sozinha.

3


Então cheguei aos meus vinte anos. E os primeiros anos dessa década realmente pareceram intermináveis. Quando ouvia pessoas que eu conhecia e que eram um pouco mais velhas do que eu lamentando o fim da juventude, eu ficava toda prosa, não me sentia ainda na zona de perigo. Tinha tempo de sobra. Até que cheguei aos 27, quando os dias de ter de apresentar carteira de identidade para provar a idade se tornaram coisa do passado e quando comecei a ficar impressionada com a repentina aceleração dos anos, e com as conseqüentes rugas e os primeiros cabelos brancos (nessa época sempre me lembrava dos monólogos anuais da minha mãe enquanto tirava do armário os enfeites de Natal). Aos 29, um verdadeiro pavor se instalou, e eu me dei conta de que de certo modo era como se eu já tivesse trinta. Mas nem tanto. Porque ainda poderia continuar dizendo que tinha vinte e poucos. Ainda tinha algo em comum com estudantes universitários em vias de se formar.

Descobri que trinta era apenas um número, que a gente tem a idade que sente que tem e tudo o mais. Também me dei conta de que, sob um ponto de vista mais abrangente, uma pessoa de trinta ainda é jovem. Mas não tão jovem. Está longe, por exemplo, da idade mais adequada para se ter filhos. É tarde demais para, digamos, começar a treinar para ganhar uma medalha olímpica. Mesmo considerando-se a hipótese de morrer em idade avançada, ainda assim a gente está a um terço do caminho para cruzar a linha de chegada. Por isso, não consigo evitar uma certa inquietação ao me sentar num sofá marrom-avermelhado bem fofo, numa sala escura no Upper West Side, na minha festa-surpresa de aniversário organizada pela Sophia, que ainda é minha melhor amiga.
Amanhã é o domingo que contemplei pela primeira vez quando era uma aluna de 5ª série, brincando com a agenda. Depois de hoje à noite, os meus vinte anos vão ter se acabado, serão um capítulo fechado para sempre. A sensação que eu tenho me faz lembrar das noites de Ano-Novo, quando a contagem regressiva começa e eu fico na dúvida entre pegar minha câmera ou apenas viver o momento. Geralmente pego a câmera e mais tarde me arrependo quando a foto não sai. Então fico extremamente frustrada e penso comigo mesma que a noite teria sido mais divertida se não significasse tanto, se eu não fosse forçada a analisar onde estivera até aquele momento e para onde estava indo.